Abaixo-Assinado (#58209):
Carta aberta do/as Professores/as do CEJA Florianópolis à Comunidade Escolar
Nós, professores/as do CEJA (Centro de Educação de Jovens e Adultos) Florianópolis, gostaríamos de expressar nossa discordância com a reforma curricular da Educação de Jovens e Adultos na Rede Estadual de Educação tal como está sendo proposta pela Secretaria de Estado da Educação (SED) e pela Resolução CEE/SC n.012 de 2022. A reforma tem muitos impactos pedagógicos na EJA e deixa de cumprir os parâmetros curriculares da Reforma do Ensino Médio. A EJA quer debater e deliberar sobre seu próprio currículo!
No final do primeiro semestre de 2022, chegou aos CEJAS do Estado de Santa Catarina, uma reforma curricular para o Ensino Médio da EJA pronta para ser aplicada. Essa reforma, baseada na Resolução CEE/SC n. 12 de 24 de Maio de 2022, abre espaço para a presença EAD quase irrestrita, retira arbitrariamente mais da metade da carga horária de algumas disciplinas, precariza enormemente o trabalho dos professores, dificulta que o estudante do CEJA obtenha a conclusão o Ensino Médio no prazo de um ano e meio e, mais do que isso, não cumpre os parâmetros curriculares instituídos pela própria reforma do Ensino Médio estabelecidos na Resolução n.03 de 21 de Novembro de 2018 do Conselho Nacional de Educação.
O currículo do Ensino Médio da Educação de Jovens e Adultos da Rede Estadual de Educação de Santa Catarina, até este ano, nos fazia cumprir todo o conteúdo Ensino Médio (três anos, 2400 horas) em um ano e meio, 1200 horas. O Currículo da EJA era composto por 12 disciplinas (Português, Matemática, Biologia - com 8 aulas semanais cada – e Química, Física, Artes, Educação Física, Filosofia, História, Geografia e Sociologia – com 4 aulas semanais cada). Além das disciplinas, havia o CCTT (Ciência, Cultura, Tecnologia e Trabalho), que compreendia a parte mais “prática” de cada disciplina, com uma aula semanal em cada disciplina. Ou seja, o currículo da EJA era dividido por disciplina, todas tinham uma parte voltada para prática e realidade social dos estudantes e se cumpria todo o conteúdo do Ensino Médio na metade do tempo do Ensino Regular.
A Lei 13.415 de 16 de Fevereiro de 2017 alterou o Ensino Médio e trouxe uma grande ampliação da carga horária para o Novo Ensino Médio: as 2400 horas passaram, no novo ensino médio, a ser no mínimo 3000 horas a partir de 2022. A Lei 13.415 de 2017 também dividiu o currículo do Ensino Médio em uma parte comum básica composta pelas quatro grandes áreas de conhecimento - o que transformou as disciplinas em componentes curriculares regulamentadas pela Base Nacional Comum Curricular- além da parte flexível, de escolha dos estudantes e relacionados com a realidade local. A lei, contudo, não mencionava ou especificava a carga horária para a modalidade EJA, nem quando o currículo deveria ser alterado.
Logo após a aprovação da lei 13.415 de 2017, o Conselho Nacional de Educação aprovou a Resolução n.03 de 21 de Novembro de 2018 que “Atualiza as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio”. Nesta resolução, no seu artigo 7º § 2º, afirma-se:
“O currículo deve contemplar tratamento metodológico que evidencie a contextualização, a diversificação e a transdisciplinaridade ou outras formas de interação e articulação entre diferentes campos de saberes específicos, contemplando vivências práticas e vinculando a educação escolar ao mundo do trabalho e à prática social e possibilitando o aproveitamento de estudos e o reconhecimento de saberes adquiridos nas experiências pessoais, sociais e do trabalho.” (Resolução CNE n.03/2018 - grifo nosso)
Neste mesmo artigo 7º da Resolução CNE n.03/2018, o seu § 4º, garante a participação das escolas na deliberação sobre o currículo: “Cada unidade escolar, em consonância com o sistema de ensino, deve estabelecer critérios próprios para que a organização curricular ofertada possibilite o desenvolvimento das respectivas competências e habilidades.” A Seção I desta mesma resolução vai tratar da estrutura curricular e o compromisso com a interdisciplinaridade e transdisciplinaridade, assim como a necessidade da presença de todas as “antigas disciplinas”, agora componentes curriculares :
“§ 2º O currículo por área de conhecimento deve ser organizado e planejado dentro das áreas de forma interdisciplinar e transdisciplinar.
[...]
§ 5º Os estudos e práticas destacados nos incisos de I a IX do § 4º devem ser tratados de forma contextualizada e interdisciplinar, podendo ser desenvolvidos por projetos, oficinas, laboratórios, dentre outras estratégias de ensino-aprendizagem que rompam com o trabalho isolado apenas em disciplinas.”(Resolução CNE n.03/2018 - grifo nosso)
Já o capítulo II da mesma Resolução CNE n.03/2018 aborda as “Formas de Oferta e Organização” dos currículos e define a carga horária mínima da parte comum do currículo em 1200 horas:
“Art. 17. O ensino médio, etapa final da educação básica, concebida como conjunto orgânico, sequencial e articulado, deve assegurar sua função formativa para todos os estudantes, sejam adolescentes, jovens ou adultos, mediante diferentes formas de oferta e organização.
[...]
§ 4º Na modalidade de educação de jovens e adultos deve ser especificada uma organização curricular e metodológica diferenciada para os jovens e adultos, considerando as particularidades geracionais, preferencialmente integrada com a formação técnica e profissional, podendo ampliar seus tempos de organização escolar, com menor carga horária diária e anual, garantida a carga horária mínima da parte comum de 1.200 (um mil e duzentas) horas e observadas as diretrizes específicas. (Resolução CNE n.03/2018 - grifo nosso)
A grade curricular apresentada na reforma curricular proposta pela SED (em anexo neste documento) indica que teremos apenas 1039,90 horas para a parte comum (Formação Geral Básica), isso já incluindo o componente curricular “Projeto de Vida”, que está sendo inserida pela primeira vez em nosso currículo. Se contarmos apenas a carga horária dos componentes curriculares (disciplinas) que já existiam no currículo anterior, saímos de 1200 horas para 959,90 horas. A reforma do Ensino Médio não deveria ampliar e qualificar o tempo de formação ao invés de diminuí-lo e empobrecê-lo?
Em síntese: a nova grade curricular foi apresentada pronta, sem a deliberação da comunidade escolar dos CEJAS e não cumpre os parâmetros curriculares nacionais estabelecidos pela Resolução CNE n.03/2018 pois não supera a organização disciplinar anterior e piora essa, na medida em que retira o CCTT e retira carga horária de disciplinas de Biologia, Sociologia, Filosofia, Artes e Educação Física sem garantir um espaço efetivo de trabalho didático transdisciplinar em que estes componentes e seus conteúdos, competências e habilidades possam necessariamente ser garantidos de outra forma. Ainda mais, a nova grade curricular não cumpre a carga horária mínima da parte geral básica (1200 horas) estipulada na Resolução CNE n.03/2018., gerando um esvaziamento pedagógico e didático de um currículo já bastante enxuto. A pergunta que nos fazemos é por que realizar uma reforma curricular dessa forma e para quem vai servir este novo currículo.
É comum ouvirmos que a EJA é uma forma rápida e fácil de “conseguir um diploma”, destinada a quem trabalha e “não tem tempo de estudar”. É verdade que nossos estudantes, jovens e adultos de idades variadas, trabalhadores que foram excluídos da escola regular, chegam ao CEJA interessados em conseguir uma rápida formação. Mas, muito além disso, eles/elas também buscam e encontram no CEJA uma nova relação com o espaço escolar: mais diversidade, um espaço de socialização e o início de um projeto de mobilidade social. Nossos/as estudantes também querem (e nós os/as incentivamos!) fazer o ENEM, vestibulares, acessar às políticas de cotas às quais têm direito e chegar às universidades públicas. Nosso público é formado por trabalhadores/as que precisam do diploma de Ensino Médio, mas também por trabalhadores/as que anseiam mais, desejam e planejam continuar os estudos e também chegar ao Ensino Superior. Talvez por isso a maioria de nossos/as estudantes seja dedicada à escola e talvez por isso seja comum ouvirmos como sentem falta de estudar mais temas e aprofundar conhecimentos, algo muito difícil de se fazer no tempo que nos era disponível no currículo de um ano e meio. Diante disso, precisamos nos perguntar como iremos garantir a formação básica aos estudantes, cumprir a LDB, com ainda menos tempo de aula. Como se preparar para o exercício da cidadania, desenvolver pensamento autônomo, preparar para a continuação de estudos quando Filosofia, Sociologia, Artes, Educação Física e Biologia tiveram a carga horária reduzida à metade? Esse público, excluído da escola tradicional e ignorado pela reforma curricular que nos está sendo apresentada, têm o direito de participar na elaboração de um currículo que realmente vá ao encontro de seus projetos de vida variados e que não os limite a uma posição social específica. A Escola deve ampliar horizontes, não restringi-los.
Para além da questão legal do não cumprimento da carga horária mínima estabelecida pela Resolução CNE n.03/2018, a nova organização curricular também promove precarização do trabalho do/a professor/a, provoca prejuízo didático aos/às estudantes e dificulta ainda que o/a estudante conclua o Ensino Médio no tempo previsto. Isso ocorre porque os CEJAs são formados por unidades descentralizadas espalhadas pelas cidades com uma imensa maioria de professores temporários que trabalham em diferentes cidades da grande Florianópolis. Somente no CEJA de Florianópolis são dez unidades descentralizadas, além da educação quilombola e da Educação em Espaço de Privação de Liberdade. Com a redução da carga horária de disciplinas e a dificuldade de deslocamento na Grande Florianópolis, irá existir um problema concreto em se contratar professores/as que estejam disponíveis para um período noturno específico muito curto, tendo que se deslocar no período de maior volume de trânsito para ministrar apenas duas aulas em uma noite. O deslocamento é igualmente uma dificuldade de nossos/as estudantes trabalhadores/as que têm dificuldade de chegar a tempo de cumprir o horário das disciplinas que iniciam as aulas 18:30/ 18:45. Ainda que se justifiquem atrasos, ocorrerá uma redução drástica do tempo de mediação didática entre professor/a e estudantes que chegarem atrasados/as ou que tiverem que sair mais cedo.
Na antiga matriz curricular havia cinco aulas de Filosofia, Artes, Educação Física e Sociologia em uma única noite e dez aulas de Biologia divididas em duas noites. Assim, ainda que o/a estudante atrasasse ou saísse mais cedo, podíamos retomar o conteúdo com ele/ela ao longo da noite. Na nova matriz curricular há apenas duas aulas de Filosofia e Artes em uma noite e três aulas de Sociologia e Educação Física. Se o/a estudante chegar apenas às 19h/19:15, há uma chance real dele/dela ter apenas 45 minutos em sala de aula com o professor/a. Considerando que no CEJA cada bloco tem em média 5 a 7 semanas, podemos ter como resultado que um/a professor/a deverá ministrar todo o conteúdo de um ano inteiro de Ensino Médio em 5 a 7 aulas de 45 minutos! O/A estudante ainda terá uma chance enorme de reprovar por faltas pelos atrasos e saídas antecipadas. Mesmo que os/as professores justifiquem as faltas, é inegável o enorme prejuízo à formação de nossos/as estudantes que essa organização curricular nos traz. Defender a reforma curricular neste moldes é dizer que a EJA é uma modalidade menor de ensino e que não é preciso garantir um padrão mínimo de qualidade. Nossa posição, contudo, é a de que nossa educação não é menos importante que a do Ensino Regular, o qual teve sua carga horária ampliada em mais de 1000 horas.
Finalizamos nossa carta relembrando a existência de ótimos currículos transdisciplinares e diferenciados, realmente adaptados à realidade da EJA, como o que existe na EJA da Rede Municipal de Ensino de Florianópolis. Dispomos também de diversos estudos e pesquisas universitárias de qualidade em nosso Estado, os quais mostram os impactos das diferentes formas de organização curricular além de modelos de currículos diferenciados, que poderiam ser pensados para nossa EJA. Temos exemplos e conhecimento para pensar em uma reforma curricular mais adequada. O que desejamos agora é um espaço para que possamos analisar esses diferentes modelos; debater e deliberar coletivamente, entre quem realmente vive a EJA do Estado de Santa Catarina, sobre como queremos organizar nosso currículo.
Diante do exposto aqui, pedimos à Secretaria de Estado de Educação que não continue com a implementação de um novo currículo que não nos contempla e que permita que nós professores/as, estudantes e servidores/as, sejamos realmente protagonistas da EJA. Queremos que se abra um espaço coletivo de debate e deliberação sobre a reforma curricular da EJA e que nós possamos coletivamente definir qual projeto e currículo de educação de Jovens e Adultos desejamos.
Florianópolis, 30 de Agosto de 2022.
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